Alma


                Em cima daquelas bicicletas nos rodamos a cidade, vemos cada rosto e sentimos cada expressão das ruas e da cidade. Somos livres, juntos somos as asas de uma águia. E lá estamos, observando as coisas, as pessoas, tudo. Nossos olhos acompanham os passos rápidos dessas e daquelas crianças, nervosas e apreensivas sobre o futuro ou até mesmo sobre o doce que não pôde comprar.
                Ainda caminhamos pelas ruas naquelas tardes um tanto quentes e um pouco úmidas, com o sol caindo sobre as montanhas e o cheiro da chuva se aproximando lentamente. Curtindo a vida como dois lobos, loucos lobos solitários. Não estamos tristes nem tão pouco solitários por falta de opção e ainda sim nem tentando nos vangloriar sobre nossos próprios sentimentos e próprias conquistas individuais.
                Nós criamos, dançamos e cantamos. Ambos seguimos colados à aquela outra realidade, não tão dura e perversa como a no mundo em que literalmente vivemos, mas nós dançamos juntos sob o luar, circulando pelas pequenas ruas, as ruazinhas escuras com poucos pontos de luz.
                Sem ter medo nós seguimos com as bicicletas, andando de um lado para o outro em plena escuridão, aliás em plena luz inebriante do olhar. E com o sentimento de  puro aproveitamento nós simplesmente sentimos o vento tocar no rosto, nossas mãos se unirem nossos corpos estarem ali, juntos e nossa alma se tornar uma.
                Enfim dançamos ao luar e esquecemos aqueles demônios estranhos, o preconceito, a realidade a incrível sociedade hipócrita e o medo de viver. Ali a realidade se torna unicamente palpável e nossos sentimentos estão em total êxtase. É  a primeira vez que estamos dessa forma, viajando em nossa própria realidade, sem delírios, sem fugas desesperadas. Neste momento estamos vivendo com os olhos abertos e os corações entregues a todo sentimento bom.
                Estamos cantando e vivendo a vida, como seres felizes não tão perfeitos mas sim únicos em nossas próprias vontades, características e o mais importante estamos vivendo como nossas almas dizem para viver. Este é o alcance da alma, a força com que ela transforma seu mundo, é o canto da vida e o sentimento de pura conquista do próprio coração.

Sem rumo !


Nós dançávamos na beira da estrada, perdidos como se nunca tivéssemos algo a seguir, uma alma à responder.  De mãos dadas, aquele asfalto parecia sem cor, andávamos unidos. Ela com seu all star um pouco sujo e eu com aquele tênis de correr.
Sua face estava completamente pesada, os cabelos caiam do rosto ao peito e a boca um pouco avermelhada, aquele vermelho natural como se houvesse um parentesco com a pequena branca de neve.  Olhos pesados como se não houvesse dormido há um bom tempo.
A coca cola em nossas mãos e as músicas em nossas bocas:
– Eu canto a mim mesmo, eu canto ao corpo elétrico e canto por todas as coisas que me faz bem. – meus lábios tremiam enquanto olhava para o céu e recitava.
– Você é engraçado começa em um sentido, divaga ao extremo e depois some, se perde nos caminhos que você mesmo criou.
Ela rodopiava e eu observava em constante admiração, parecia um cisne planando no espelho do lago, uma bailarina dançando ” O Lago do Cisnes”. Meu corpo se movia conforme aqueles sorrisos, às feições de acanhamento, um tanto meiga e um tanto perversa.
– Vem vamos pedir a carona? A coca já ficou quente e nós estamos aqui, andando como duas crianças indefesas.
– Tudo bem, mas cuidado. Como minha mãe dizia aqueles antigos e medonhos homens do saco agora caminhavam e não caminhavam sozinhos e solitários com suas próprias pernas. Agora andam nos cavalos motorizados  colocando garotinhas na garupa e prometendo as mesmas meio mundo de felicidade.
– Deixe de ser bobo, sou uma princesa-demônio. Roubo os corações – enquanto dizia ela se movia me fazendo perder o folego e fazendo com que eu sentisse o medo em minhas próprias mãos.
– Tudo bem senhorita Perdição – sorri um tanto sem graça – Tomemos a coca e peçamos a linda carona –  meus olhos voltaram a encontrar com os dela e  simplesmente as palavras saíram  – Carpe Dien para nós e para os outros.
– Então vamos! – ela virou o corpo, beijou-me no rosto como se beija uma criança e roubou a coca de minhas mãos – Carpe Dien, pequena criança. Venha, vamos para  aquele trevo.
– Sim – meu pensamento agora se voltava para o oculto. De pegar carona com estranhos homens do saco à locais costumeiros a rituais místicos.
E ali o tempo passou. Por grande parte nós não dissemos nada, mantínhamos aquela constante brincadeira infantil de namoro com os cílios. Teu belo rosto agora estava colado ao meu, não estávamos pensando mais na carona e nossos corações se uniram. Selamos nossos lábios e por fim entendi este, era o nosso vídeo game.
O carro  passou, parou e lá estava o nosso singular homem do saco, vestido como um verdadeiro anjos dos veículos. Barbas longas e ruivas, compridas e grossas. Olhos negros e perdidos como a noite. Corpo branco, um doce de leite.
– Uma carona para jovens perdidos?
– Talvez sim, senhorita Dark.
– Interessante, mas essas roupas não dizem nada.
– Ok! – ele riu como se o que ela dissesse fosse uma piada única. – Entre e você garoto sem língua sente aqui.
– Sim, senhor. – as palavras soaram como se ele fosse um comandante.
– Vamos ligar a música barba vermelha.
– Sim, mas meu nome é Peter e não Barba Vermelha.
– Tudo bem – ela o imitou no jeito de falar e soltou pausadamente  – Peter o Barba Vermelha.
Os dois riram e não tive outra opção a não concordar.
– Qual o seu lema garota perversa?
– Carpe Dien.
– E você garoto, qual teu lema?
Meu corpo e alma se encheram de coragem e de um sentimento excitante, olhei para minha Branca e disse:
– Carpe Dien, Senhor.
– E você Barba Vermelha ?  – Pela primeira vez eu e ela dizíamos as palavras juntos, em forma única.
– Eu – uma gargalhada se fez em meio a pausa – Eu apenas dirijo.

Anjos da Noite



Ainda perdido, andava pelas ruas escuras durante uma madrugada errante. Meu corpo se erguia como um monstro se ergue diante ao fim da noite, e nós corríamos, brincávamos como pequenos demônios brincavam ao aproveitar a noite.
                Lá estava você ao meu lado, expulsando suas asas negras e dançando pelas ruas sentindo a chuva descer por entre o corpo, perversão, amor e sexo. Todas as coisas estavam chegando em nossas almas. Ainda andávamos como os verdadeiros guardiões da noite.
                Perdidos nos encontros das esquinas, nas portas dos bares e nas pistas de dança daquelas boates antigas, erámos loucos e todos os nossos verões eram ali em meio as bebidas, em meio ao rock em meio ao suor, enfim a nossa perversão. Única e incontável perversão.
                Andávamos como duas crianças comportadas mais com a mente possuída por monstros de outras realidades, erámos ainda pequenos, criancinhas com os olhos vermelhos e com as almas cheias de um buraco escuro, tão escuro que nós tínhamos uma única e pequena luz. Sim, restava luz em algum lugar de nós mais isso não nos atraia, ainda gostávamos da forma nua e crua na qual nossas mentes trabalhavam.
                As luzes dos postes ainda continuavam acesas e ao passo em que caminhávamos pouco apouco elas apagavam, como se toda a vida ali acabasse ,como se nós levássemos tudo para o fundo, tudo para aquele buraco negro, fundo.
                E nossas asas abriram novamente, a rua ficou totalmente contaminada por nossa escuridão, os gritos ressoaram durante quarteirões e ali ficamos extasiados aquela música vinha da boate e nossos corpos se encontravam dançando pelo ar. Todos nos observavam, monstros dançando, monstros com asas nem tão monstros e sim anjos.
                Os anjos da escuridão, e o canto era alto, os nossos corpos agora se encontravam e chocavam finalmente como esculturas esculpidas a mármore. E o céu agora ficava escuro com uma única ponta iluminada, um vermelho sangue no meio dos céus e dois pontos escuros vistosos movimentando em constante rapidez.
                Toda a terra estava calada e só nós nos movíamos, apenas nós dois conseguíamos ouvir o canto e sentir a luz por entre toda a escuridão, nós erámos a luz da escuridão em sua própria e majestosa escuridão, o ponto mais escuro, o ponto mais claro.
                Inegavelmente era essa a nossa forma de ser, de sentir e de ver as coisas.  Agora erámos tudo, todos. Havíamos nos tornado tudo que queríamos e podíamos ser. Não erámos simples anjos nem grossos monstros. Erámos apenas os Anjos da noite.